02 dezembro 2008

Duelos: Poluição VS Buraco do Ozono


Naquela noite de final de ano, a Poluição resolveu ir até à discoteca mais in do Mundo, situada em pleno coração industrial da China, para se enfrascar com uns valentes copos e abanar o capacete. Apetecia-lhe ouvir um pouco de kizomba, pois tinha ficado imediatamente possuída pelo ritmo veloz e sensual deste tipo de dança nas suas recentes expedições de angariação a África, que por sinal haviam dado muitos frutos.

A Poluição já não era nenhuma gaiata. De facto, já ia a caminho dos duzentos anos, dado que nascera em plena Revolução Industrial, mas estava muito bem conservada, com os seus milhares de operações plásticas e injecções de botox. Não parecia minimamente a idade que tinha, e dava, na maior, com os seus sapatos com saltos astronómicos de betão e revestimento poderoso a aço, um baile a muitas outras catraias mais novas, que mal conseguiam movimentar-se ao som da música tecno, elaborada em mesas de mistura altamente sofisticadas. Felizmente, longe iam os tempos do som careta do violino e das batidelas xunga das teclas de piano.

O ano de 2008 tinha corrido extraordinariamente bem à Poluição, com violações sucessivas do protocolo de Quioto, que tinham resultado num crescimento inesperado e estupendo das emissões de dióxido de carbono. Ela tinha ficado rejubilante de alegria com as inúmeras provas de apoio que havia recebido por parte dos Países de Todo o Mundo, decerto com receio de uma reforma antecipada, pois eles contavam com o seu contributo essencial para Destruir a Terra, tarefa penosa que se comprometera a levar a cabo há já muitos anos.

Resolveu vestir-se a rigor para se despedir daquele período luminoso da sua vida. Envergou um vestido preto, confeccionado pela melhor fábrica de curtumes de todos os tempos, aquela mais malcheirosa de todas; pintou as unhas com um verniz que era os olhos da cara no que respeita à toxicidade; penteou a sua cabeleira postiça, feita de tiras de plástico fluorescente, num acelerador de partículas cedido corruptamente por uma central nuclear; cobriu-se com uma capa brilhante de vinil; e, para completar a minuciosa toilette, borrifou-se com um perfume esplendoroso, cuja essência era um misto do bafo quente do monóxido de carbono e do aroma fulminante dos matadouros de porcos

Tudo isto compunha uma imagem tão deslumbrante, que o porteiro chinoca da discoteca, mal a avistou, ficou com os olhos ainda mais em bico do que o costume, e resolveu deixá-la entrar sem pagar a quantia exorbitante de ienes que cobrava aos outros clientes chinocas.

Entretanto, o Buraco do Ozono, um chavalo para aí com os seus cinquenta anitos, encontrava-se nesse momento no sossego plácido do seu turismo rural, situado a poucos quilómetros da dita discoteca. Ele resolvera ir até aquele antro de depravação chinês para ver com os seus próprios olhos míopes a destruição que aqueles meias lecas amarelos, aqueles filhos de um raio dos chinocas, andavam a infligir no Tibete, local de meditação e espiritualidade que ele tanto apreciava.

Passava pouco depois da meia-noite, quando o Buraco do Ozono decidiu que já era altura de ir para a caminha, enrolar-se na sua manta de lã de carneiro, oferecida por um rebanho de ovelhas caridosas que se comoveram com a sua nudez crescente. Só que algo não o conseguiu deixar adormecer. Algo profundamente desenvolvido em termos sonoros: o barulho ensurdecedor proveniente da discoteca. A música bombava ininterruptamente nos seus ouvidos débeis, muitos decibéis acima dos que os aconselhados pela Comissão de Defesa dos Direitos Auditivos.

Apesar de o Buraco do Ozono ter sido muito tímido até à idade adulta, nos últimos anos, por causa da velhice e do crescimento abrupto que andava a sofrer devido a consecutivas mutilações, a sua popularidade tinha aumentado substancialmente e a sua timidez começara lentamente a dar lugar a uma forma revoltada de extroversão. Logo, foi sem espanto, a não ser para quem já não o via há muito tempo, que o Buraco do Ozono se dirigiu todo armado em poderoso à dita discoteca, com o intuito de impor respeito e acabar com aquela algaraviada toda que impedia o desenrolar saudável do seu sono. Era tanta a confiança que sentia em si próprio, que nem se deu ao trabalho de se vestir convenientemente. Foi mesmo como estava: de robe, chinelos, e pijama com ursinhos dos Forever Friends (o Buraco do Ozono estava mesmo a passar por uma fase de muita coragem, tanta que roçava o inconsciente, pois convenhamos que ursinhos Forever Friends já é um pouco demais!).

O porteiro da discoteca tentou barrar-lhe o caminho, personagens como aquela estragavam a boa imagem da casa e afugentavam a clientela. Mas o Buraco do Ozono alegou que, caso não o deixassem entrar, iriam sofrer as consequências das suas queixas a todas as televisões, rádios, revistas e jornais do Ocidente. Pelo que o chinoca não teve outro remédio senão deixá-lo passar, pois sabia que ultimamente aquele ranhoso do Buraco do Ozono tinha conquistado muitas amizades nos circuitos editoriais Europeus, e o chinoca não queria problemas com o seu gerente, porque prezava muito o seu emprego e não queria voltar para a contrafacção de trajes Armani, tema de especialização do seu Mestrado Universitário e actividade à qual dedicara grande parte da sua vida.

Então, o Buraco do Ozono penetrou naquele espaço, decorado de escuridão intercalada com poderosas luzes de néon, e viu imediatamente a figura musculosa, toda inchada de esteróides, da Poluição. Ia-lhe dando um colapso. Aquela era a sua maior inimiga. Mesmo não tendo um temperamento violento, o ódio que lhe tinha era tanto, que lhe apeteceu imediatamente ir-lhe à fuça. Punhos de ozono a esmurrar aquela tromba impecavelmente maquilhada com fuligem.

Ursinhos Forever Friends atravessaram a pista de dança e alcançaram a poluição, limitando-se a apertar-lhe o braço (porque Ursinhos Forever Friends não possuem a audácia suficiente para encetar umas boas bofetadas):

- Que é que fazes aqui, minha megera? – rugiu ele.

A Poluição olhou, sobranceira e enfatuada, para o Buraco do Ozono, soltando uma gargalhada estridente ao observar a forma ridiculamente vestida com que ele se apresentava.

- Então babe, relaxa! É passagem de ano, estamos todos numa boa! Porquê esses maus modos para cima de mim? Toma mas é uns desses! – disse a Poluição, enfiando-lhe na mão vários comprimidos cor de rosa, que o Buraco do Ozono verificou, em estado de choque, tratarem-se de ectasy, algo perfeitamente desconhecido para a sua faringe azul.

- Não preciso das tuas drogas, sua porca! Vê lá se apanhas mas é uma overdose! Morre de uma vez por todas para que eu possa garantir o futuro da Terra! Desta Terra que tu andas a conspurcar com as tuas merdas! – o Buraco do Ozono estava a ficar fora de si e proferia palavras menos correctas com uma intrepidez que não lhe era própria.

- Então babe, relaxa! Cai na real! Eu sou demasiado popular para desaparecer! Toda a gente me acha uma bacana! Desde os meus sócios aqui na China até aos tansos dos índios da Amazónia. Capiche? – comunicou-lhe a Poluição, com olhos semicerrados e avermelhados, completamente pedrados por todos os estupefacientes que já tinha consumido durante a noite.

- Cala-te sua bruxa! Vão-se catar, tu e mais o teu amantezinho de merda! Esse tal de Capitalismo, não é assim o nome dele? - Então, meu Ozonozinho lindo, estás com ciúmes? Não tens motivos nenhuns para isso! Sabes perfeitamente que o meu maior desejo é comer-te todo até não sobrar nem um bocadinho de ti! – referiu a Poluição, ao mesmo tempo que movimentava a língua de forma obscena e lhe agarrava as costas, arranhando-as sem parcimónia.

O Buraco do Ozono não era nenhum puritano, mas aquela meretriz da Poluição já estava a passar das marcas e merecia uma lição. Ele decidiu que, no dia seguinte, logo pela manhãzinha, iria derreter mais um bocadinho das calotes polares da Antárctida para chamar a atenção dos seus protectores e para que a Poluição sofresse mais uns sermões. (O Buraco do Ozono era um bocado queixinhas, mas também, coitado, se não fosse assim, não conseguia chegar a lado nenhum, pois ninguém o via, de tão amarfanhado que normalmente andava no meio da estratosfera).

Quanto à Poluição, no dia seguinte estava de ressaca e nem se deu conta do sucedido. O que era previsível, pois a Poluição tinha as costas demasiado quentes para se preocupar com o seu futuro. Estava de casamento marcado com o Capitalismo, o grande sultão do Mundo, com quem namorava há largos anos, pelo que estava prestes a tornar-se numa Cleópatra Moderna. Nada a podia parar.