23 janeiro 2009

Ode às Palavras

Cubos de gelo que escorregam
Pelo orifício banal, bucal
Os tímpanos (que perspicácia!) derretem-nas
Em emoções, exclamações e interrogações
Que novas sílabas de saliva
Fazem viver
Ou então (que audácia!), transformam-nas em silêncios
Falsificados pelo coração

As palavras são tudo e, ao mesmo tempo, não são nada. Elas são os tijolos do passado e a argamassa do futuro..

Lançam o desespero quando, a baloiçar no precipício da língua, acabam por desistir de voar pelo desfiladeiro, e regressam, arrependidas, ao silêncio donde partiram.

As palavras são perigosas, podem até matar quando conjugadas de formas demasiado imperfeitas, transformando-se, à velocidade do som, em facas afiadas que rasgam todas as esperanças.

Por vezes são meigas e despejam a sua seiva nos sonhos secos, devolvendo-lhes generosamente a fertilidade.

Podem enlouquecer quando se perdem nos labirintos vastos das auto estradas do cérebro.

Quando repetidas vezes sem conta, perdem a graça, despem-se de sentido e regressam ao mundo paleolítico dos urros e dos grunhidos.

As palavras são as anfitriãs da vida, convivendo nas festas dos parágrafos, nas romarias das rimas, nos cafés das frases, nos casamentos dos poemas, no breve encontro das saudações.

São tão eclécticas e versáteis que é possível encontrá-las em qualquer ocasião.

Estão em todo o lado, na boca do moribundo que tarda em morrer, na exclamação de felicidade da noiva acabada de casar, nos cânticos melancolicamente infantis que ressoam na casa toda enfeitada para o Natal, nos vitupérios primários dos invejosos, na grande e escura noite da solidão, no dia morno e fecundo da Primavera.

Tocam todos os dias, vezes sem conta, no comum gramofone bocal, onde são riscadas pelos dentes e oleadas pela saliva.

Com elas construímos o mundo e movemo-nos nos trilhos secretos da imaginação.

Não há dúvida, as palavras são os best sellers do dia a dia.

Fiéis companheiras de percurso que, com os seus concertos orquestrados pela nossa língua e o suave marejar que provocam quando ocupam por inteiro o nosso pensamento, nos dissuadem de nos tornarmos puros eremitas.

08 janeiro 2009

O Ano Novo: O Despertador da Natureza

O Ano Novo é sempre aquele momento marcante em que as pessoas resolvem tomar grandes decisões:
“Vou parar de fumar”,
“Vou fazer dieta”,
“Vou praticar exercício físico três vezes por semana”,
“Vou mudar de emprego”,
“Vou marcar uma viagem”,
“Vou deixar de trabalhar tanto”,
“Vou passar a ver menos televisão”,
“Vou perseguir o meu sonho”,
(Aquele, o tal, o de sempre, o Sonho, escondido algures dentro de nós, imperceptivelmente escamoteado pela realidade),
“ Vou deixar de comer hambúrgueres e batatas fritas ao almoço”,
“ Vou começar a lembrar-me sempre dos aniversários dos meus amigos”.
“ Vou passar a ir ao médico”.
Etc, etc, etc.
Todas estas deliberações, que de comum têm o facto de serem objectivamente benéficas para a nossa vida, podem ser resumidas num:
“Vou-me tornar diferente”.

Não há dúvida que, nesta altura do ano, surge uma enorme necessidade em assumir novos compromissos perante nós próprios. Encaramos o Ano Novo como uma nova chance que a vida nos dá para recomeçar. Queremos tornar-nos naquilo que não somos e sempre quisemos ser.
Subitamente, como que acordados pelo despertador da urgência, começamos a ter pressa. Daí a súbita ansiedade, o desespero por não sabermos se ainda vamos a tempo, a motivação fulminante, Fazemos um balanço do passado e queremos refazer os erros, queremos embrenhar-nos finalmente nos caminhos proveitosos do certo, queremos tudo de uma vez.

As doze badaladas tocam nos sinos ancestrais das praças. Tampas e tampas de garrafas de champanhe irrompem com estrondo pelo ar festivo da noite. Comem-se passas. Grita-se. Salta-se. Dança-se. Um novo fôlego toma conta de nós. Pensamos na agenda ainda novinha em folha, completamente por estrear, cheia de dias e de horas em branco. Que tranquilidade é sentir que o nosso prazo de validade se prolongou, em princípio, por mais 365 dias. 365 alvoradas de possibilidades.
O Ano Novo traz Esperança. Finaliza um ciclo. É o carimbo oficial da vida que permite deitar o passado ao lixo e que atesta uma nova oportunidade.

Porque esquecemos então, à medida que os dias avançam e que o ano perde a frescura, todas as ideias fantásticas que decidimos pôr em prática?

... Talvez porque, infelizmente, a memória das emoções é sempre curta. Somos bons a recordar acontecimentos e a saber que, nesta ou naquela altura, fomos felizes, ou que em determinado momento a tristeza vacilou em nós como um baloiço em andamento. Mas não conseguimos sentir novamente essa felicidade ou essa tristeza. Apenas sabemos que, algures em nós e algures no tempo, elas existiram.
O mesmo se passa com o ânimo que surge nesta altura do ano. Lembramo-nos vagamente dele. Até podemos ter uma lista pendurada no frigorífico; um pedaço de papel rabiscado que acena timidamente na branca e fria porta que abrimos repetidamente ao pequeno-almoço. No entanto, já não sentimos qualquer impulso para a acção. O sopro diário da rotina imobilizou-nos. Começámos a acumular dias e dias às costas e o peso tornou-se tão grande que qualquer movimento se tornou perfeitamente impossível.

Só que esquecemo-nos que, se não conseguimos conservar as emoções, podemos sempre reviver os acontecimentos. Esquecemo-nos que o Ano Novo pode ser todos os dias.

... Uma das coisas mais importantes que eu aprendi na vida foi a arte da reciclagem diária. Eu não sou hoje exactamente aquilo que fui ontem, nem serei amanhã exactamente aquilo que sou hoje.
Acharmos a continuidade uma imposição da vida é algo que nos vai sempre roubar a liberdade.
Ser verdadeiramente livre é ser livre cá dentro, no âmago da consciência. E nunca nos prendermos nem ao tempo nem àquilo que fomos um dia.

O Ano Novo é só a forma que a Natureza encontrou de nos relembrar disto, de nos fazer ver que, quem nos acorrenta ao passado e quem tem o poder de nos dar umas novas asas para voarmos mais além, na direcção do horizonte sempre imaginado e nunca perseguido, somos sempre nós próprios.