22 outubro 2008

Encerramento do Rotund@s e Encruzilhad@s

Por motivos de ordem pessoal, conhecidos de muitos, e porque o tempo é daquelas coisas imutáveis, ou seja, não cresce, deixei de escrever aqui no blog e suspendi a minha colaboração com o Voz de Alpiarça.

No entanto, não podia deixar de reagir a um 'blogacontecimento' referente a Alpiarça e que é o encerramento (espero que seja temporário) do blog http://rotundaseencruzilhadas.blogspot.com

Têm havido exageros na escrita, e muitos insultos gratuitos, o que não abona em favor de quem mantém e investe muito do seu tempo na actualização deste novo meio de comunicação em Alpiarça.

O Rotundas e Encruzilhadas (R&E) cumpriu um objectivo que é: disponibilizar diariamente informação actualizada sobre o nosso concelho.

É bom para quem vive e/ou trabalha fora, divulga acontecimentos que doutra forma não teriam divulgação e reúne num só sítio as diversas notícias que vão sendo publicadas noutros orgãos de comunicação social.

Na prática, tornou-se um eixo central da discussão de certos assuntos, com a grande vantagem de ser imediato e acessível.

Dias há, em que os assuntos se sucedem a um ritmo vertiginoso e os comentários acompanham esse ritmo.

Transmite a idéia que há muita gente a visitar este fórum, e que Alpiarça está viva na blogosfera.

Não sei quem é o Administrador do R&E, nem estou interessado nisso.

Apesar de ser contra o anonimato, como princípio, reconheço que doutra forma quem dá a cara pode ficar sujeito a alguns episódios menos dignificantes como são a GNR a bater à porta a chamar para depoimento no posto, no ãmbito de denúncias à procura de saber quem são os autores de determinados textos ofensivos.

Pelo que fui lendo, concordo que houveram muitos abusos, e que a ofensa gratuita concerteza lesou muitas pessoas directamente visadas nesses comentários.

Por mim, exerceria o direito de escolher mais criteriosamente os comentários a publicar (como o fiz algumas vezes aqui no Alpiarcense, não publicando algus comentários mais ofensivos), no sentido de elevar o nível da discussão no blog, credibilizando assim o seu conteúdo e os seus autores (anónimos ou não).

Acho que Alpiarça e os Alpiarcenses precisam definitivamente de um R&E, ainda mais agora que vamos entrar num novo ciclo eleitoral.

Como disse no início, e por razões pessoais, não tenho tempo disponível para me envolver num projecto destes, mas darei todo o apoio moral a quem se disponha a manter o R&E.

Façam um estudo de mercado e obtenham a opinião de quem lê o R&E. Saibam o que tem estado mal até agora, identifiquem as expectativas das pessoas em relação ao blog e aos seus textos, procurem saber que temas mais interessam, e divulguem esses resultados.

Firmem um estatuto editorial que defina critérios de publicação que permitam gerir os comentários e a linguagem utilizada no blog, e verão que o mesmo ganhará credibilidade e assumirá cada vez mais, um papel importante no seio da sociedade alpiarcense.

Por fim duas mensagens:

1. Ao Administrador do R&E - Espero que tenha percebido pelos comentários que têm chegado depois do encerramento, que o R&E ganhou uma vida própria e que não é nem poderá ser sua a decisão de o encerrar, pois a importância do blog em Alpiarça é de tal forma grande que se pode dizer que a criatura ultrapassou o criador;

2. Aos jovens deste concelho - Porra, o que é que andam a fazer que não pegam num projecto como este e mostram a vossa irreverência. Têm os skills, têm as ferramentas, têm tempo e disponibilidade, e não aproveitam para serem cidadãos com C maiúsculo... como dizia o outro... ai se eu pudesse!

Helder Figueiredo

Meu velho amigo e camarada Parente





Por: António Centeio

Estava ausente quando soube da notícia do falecimento do meu velho amigo e camarada Parente. Ao receber a informação da fatalidade a minha alma transfigurou-se de tal forma que as lágrimas se derramaram pela face como tivesse sido molhada por uma torrente de água. De imediato regressei para que não faltasse ao seu funeral. Assim aconteceu.
Ainda criança quando via a minha pessoa chamava-me logo para saber onde andava e o que estava fazendo. De seguida dava-me conselhos de toda a espécie para que quando um dia “fosse um homem, soubesse honrar quem me deu vida” porque “estes mereciam tal coisa”. Marcou-me profundamente. De tal forma que o considerava como o “meu melhor protector e o melhor professor das coisas da vida,” quer pela sua experiência como ainda pela maneira de falar e sabedoria. Eu era a criança que ele adorava. Encarava-me como seu “favorito” talvez pela amizade que o unia a meu falecido pai como a estima que a minha família lhe merecia.
Sobre a sua pessoa, lembro-me de ouvir as mais variadas e pitorescas histórias que fazia como o imaginasse numa espécie de centurião romano ou um musculoso homem de outro planeta em virtude de seu enorme corpo e cara de respeito que apresentava para com todas as crianças. Algumas não passavam de lendas mas outras eram verdadeiras. Que eu saiba nunca casou e muito menos viveu com mulher alguma mas sabia -porque me disse – que visitava de tempos a tempos a “casa das meninas” onde satisfazia as suas necessidades. As histórias originárias destes encontros ensombraram durante algum tempo a minha imaginação sobre os prazeres da luxúria como me espevitava o caminho para a curiosidade de saber se na verdade a coisa era tão boa como Parente dizia. O tempo se encarregou de ensinar que na verdade ele era um “mestre na arte”.
Originário de famílias de posse, bem cedo se separou de quem o estimava, dispensando ao mesmo tempo a fortuna que os “seus lhe tinham destinado”. Sempre quis viver do que ganhava e levar a vida que gostava. A sua liberdade por preço algum trocou, ao ponto de feito homem, os familiares se envergonharem da sua situação precária e das pobres condições em que vivia. O que lhe interessava era a sua felicidade. Pura e simplesmente marimbava-se para o que diziam e pensavam dele. Sempre satisfeito com a vida ensinava aos mais pequenos – tipo de gente que adorava «nunca devemos deixar de ser aquilo que somos mesmo contrariando a vontade ou os desejos dos outros”. As crianças quando o viam na rua era como vissem o deus dos deuses. A gritaria entoava pela rua e toda a gente ficava a saber que Parente estava rodeado dos mais pequenos. Era a sua alegria e felicidade. Os seus enormes dentes mostravam a grandeza da sua alma. Um homem pronto a fazer e a dar o seu melhor pelos outros sem nada querer em troca.
Quando me fiz homem e iniciei o percurso da vida Parente seguia-me de perto. Se por alguma razão a ausência do seu predilecto se prolongava ia recolher as informações necessárias para saber do ponto da situação: se não lhe agradasse o que ouviu, desbravava caminhos e encruzilhadas para me ver ou aconselhar daquilo que considerava o “melhor para mim”. A experiência da vida ensinou-me que os seus conselhos eram os melhores e os mais certos.
Do meu velho amigo e camarada Parente nunca me esquecerei daquilo que sempre ouvi dizer como algumas vezes cheguei a testemunhar:
Decorria a década de cinquenta do século passado. A sala do cinema compunha-se de várias filas de cadeiras. Distribuídas por classes, davam-lhe os nomes de: “Geral (que chamavam também de piolho) Plateia, Balcão e Camarotes”. No primeiro andar, tipo meia-lua, o “Primeiro e Segundo Balcão”; nos cornos da lua, encaixava-se uma meia dúzia de camarotes, a puxar para o finório com a ajuda de carteiras bem recheadas. Era o espaço dos senhores janotas e das madames vistosas. O “camarote” mais distinto estava reservado “perpéctuamente” ao fiel cliente, conhecido por Parente.
A alcunha, vinha por esta figura, considerar nas outras, um laço familiar como que, sendo todos descendente da mesma espécie. De pouco valia argumentar. A origem da família, para o Parente estava escarrapachada no Livro do Mundo a que chamava de Divino. Se em causa fosse posta a sua teoria, enviava os contraditores para a casa do pároco, que mais do que ninguém lhe servia de testemunha.
Um homem aí na casa dos cinquenta. Bem encorporado, possuidor de uma voz rouca que até fazia estremecer quando levantava o timbre. Solteiro, residente numa casa térrea, de uma só divisão, onde numa das paredes tinha pendurado uma velho relógio de capelinha, que para a rapaziada com menos de uma dezena de anos «era um rato amigo do dono que dava corda ao marcador de horas». Com profissão desconhecida mas sempre com uma carteira apetrechada de trocos. Os suficientes para gastar a seu belo prazer e dar a quem só ele entendesse necessitar.
Homem estranho, gozado pela canalha mas temido pelos grandalhões ou seus iguais, de alma, porque fisicamente estavam a léguas de distância na força e tamanho.
Agarrava em duas sacas de cimento de cada lado do corpo – pesando cada uma cinquenta quilos – seguras pelos braços que ao subir a escada em vez de ser ele a cair com tal peso, eram os degraus que se partiam. Homem estranho como esquiva era a sua maneira de viver.
Mal abria as portas do “Cine” Parente tinha que ser o primeiro a entrar. Ia directamente para o seu “camarote”. Sentava-se, cruzava a perna, para de seguida começar a ler o jornal, com os seus óculos de sol – lentes bem escuras – que o acompanhava quer fosse de dia quer noite, Inverno ou Verão.
A sala ia enchendo, vendo-se aos poucos, as cadeiras – conforme os bilhetes iam sendo rasgados pelo porteiro – a dar forma no interior da casa de espectáculos como a garantir aos pagantes que a sessão ia ser boa; o contrário era sinal de má escolha. Na hora anunciada desligavam-se as luzes para logo rodar a fita da sétima arte.
Parente pouco ligava à rotina como ao desenrolar do filme para continuar a ler o tabloide, vindo de não se sabe donde.
De algures, ouvia-se uma voz «Oh Parente, está a ler às escuras!». Ria-se para dobrar o jornal, metendo-o de seguida no bolso de casaco. No intervalo, era o seguimento do que não foi acabado.
Mais uma vez a voz estranha clamava « Parenteee!....., o jornal está ao contrário! Está a ler as notícias de pernas para o ar!» E, estava mesmo, porque o Parente não sabia ler. Apenas gostava de exibir a sua ignorância – para os outros – de homem simples com sonhos de grandeza como os seus cultos vizinhos de camarotes situados a bandas do seu – os debaixo, eram da classe média.
Era boa pessoa. Continuamente sorridente mas inseparável da sua gasta folha de periódico como dos seus velhos “Óculos de Sol” comprados por tuta-e-meia em qualquer banda que nem ele próprio sabia. «Comprei-os a um contrabandista que por aqui passou, depois de finda a Grande Guerra». Verdade ou mentira, nunca se apurou.
«Aí está ela!»
Era a Sara Montiel a artista preferida de Parente e a personagem principal do filme. A “Plateia” batia palmas ao Parente salvo quando os do baixio apanhavam na cabeça as cangalhadas e cascas de amendoins que a classe finória mandava para o vazio.
Era logo um banzé na choldra. Neste momento o corpanzil do Parente erguia-se em plena escuridão para admoestar a populaça «calem-se suas cavalgaduras que quero ouvir a Sarita». Calavam-se mesmo.
Velho e amigo camarada Parente como a sua ordem era respeitada, mesmo que lá no fundo, todos gozassem com as saídas inesperadas do Parente.
Uma figura castiça que memorizou histórias do arco-da-velha nas gerações seguintes; história adulteradas que inferiorizam Bocage.
Belo dia de Carnaval, subiu com a sua pasteleira, até meio, a íngreme rua. O restante foi a pé, segurando o transporte pela mão, levando em cima do guiador do velocípede, um par de cornos, comprados na manhã do dia, no talho do Felismino.
Chegado ao cimo, monta-se em cima do selim, seguro pelo quadro de aço alemão e assente em duas rodas com locomoção humana, para descer com toda a sua força muscular, muito própria de quem a tinha, ganhando uma velocidade tonta. Às tantas perdeu o equilíbrio para se estampar de rejeitada em cima do passeio empedrado. Como caiu como ficou. O corpo todo estendido assustou o mulherio que gritou logo por socorro. Tinha havido um acidente grave: a vítima não era nem mais nem menos do que o Parente.
«Ai que o Parente morreu! Chamem uma ambulância»
Estavam os maqueiros colocando o folião na maca, quando o morto se levanta, gritando «Alto e pára o baile, que o artista nunca morre no filme!»
Aquilo é que foi uma gargalhada. Só o Parente para fazer uma cena destas. Durante semanas, logo conhecida a coisa da canalha, foi o tema mais falado na escola.
Parente foi durante anos o ídolo da criançada. Bastava ser visto por um, logo outros se juntavam em grupo como bando de pardais.
Quando um dia correu a noticia que Parente «foi desta para melhor» – ainda por cima no dia dos finados – toda a gente das redondezas fez questão de acompanhar o corpo à ultima morada. A figura mais típica da terra, quando dentro do caixão, foi cercada por pessoas, que ele próprio se fosse vivo, nunca tinha visto de lado algum.
Quem gostava de andar em cima da terra passou a estar debaixo dela. Muitas lágrimas se derramaram naquele dia de infelicidade e muitos lenços foram lançados para cima do baú rectangular de côr castanha.
Aí, meu velho amigo e camarada Parente todos te recordam e todos nós falamos de ti, como no nosso meio estivesses.
Recentemente, no Carril, depois de passadas algumas dezenas de anos, após a sua morte, colocaram seu nome e alcunha numa rua para que seja lembrado enquanto a memória dos vivos recordar o Parente. Vale mais tarde do que nunca.
Visite na Internet o site: www.terradovento.com

21 outubro 2008

Parabéns a Mim


Acordo sem sono, num esgar de impaciência do corpo adormecido. Os ponteiros incansáveis do relógio informam-me de que são cinco da manhã. Apercebo-me que esta noite, para além do silêncio oxigenado pela lua cheia, só existo eu. Sinto-me...Como é bom estar viva...

O coração a comandar as tropas do sangue que galopam pelas veias a disparar oxigénio para todas as ilhas do corpo. O cérebro a contar os tostões do pensamento e a apontar a contabilidade da vida no caderno rasurado da memória. E a alma, eterna fugitiva das grades materialistas da Ciência, encontra o seu refúgio a meio caminho, no último instante entre o sentir e o pensar.

Aqui, nesta noite cercada pela intensa magnitude da escuridão, escrevo a minha consternação alegre por poder desfrutá-la. Percorrendo a cronologia do passado, avisto inúmeros rostos que podiam ser o meu. Sob que desígnios sábios e ulteriores a nós próprios nos é concedido um rosto? Eu sou Eu. E, em ocasiões determinadas pelo germinar da felicidade amplamente desencravada dos terrenos calcários da possibilidade, este saber de mim própria refresca, com a intensidade das paixões proibidas, tudo o que sou.

Hoje a madrugada antevê o sol do meu aniversário. Descubro que quero receber muitos presentes, não daqueles de conteúdos efemeramente materiais, mas daqueles embrulhados na utopia.

Quero umas pastilhas elásticas com sabor a sol e a céu azul. Quero uns ténis específicos para correr na maratona dos sonhos. Quero um colchão anatómico para prevenir todas as noites a má postura da alma. Quero uns óculos que só ampliem a felicidade. Quero um quadro do passado pintado com as tintas da alegria. Quero um cachecol que proteja dos contratempos. Quero aspirinas para curar as tristezas do caminho. Quero os lápis de cor que me serviram para colorir a brevidade sorridente da infância. Quero que o espelho me devolva sempre a minha face, e não outra qualquer deturpada pelos outros ou inventada por um qualquer futuro que não seja o meu. Quero que todos os que habitam em mim se imobilizem na fugacidade do tempo e adquiram assim a consistência praticamente eterna das rochas. Quero segredos, muitos, contados pelos minúsculos átomos de sabedoria, que espero um dia virem a habitar-me total e permanentemente. Quero mais momentos assim, suspensos da ponta da caneta, à espera que os seus ruídos de algodão doce se inscrevam na memória do papel. E quero um pack de 365 noites como esta, em que a vida se apresenta numa lata de abertura fácil, escorrendo sob a forma de um líquido denso, púrpuro, brilhante, único e orgulhoso – Eu.

Por tudo isto e muito mais, o copo de champanhe que me escorrega com fremente ansiedade pelas mãos, merece ser tragado de um só golo. Parabéns a Mim!

(Como é bom ter a oportunidade de ser Eu no mundo previamente trilhado do convencional!)

15 outubro 2008

O propósito da vida

Recebi agora este e-mail e decidi partilhar convosco.

O autor do texto é João Pereira Coutinho, jornalista.


"Não tenho filhos e tremo só de pensar. Os exemplos que vejo em volta não aconselham temeridades.Hordas de amigos constituem as respectivas proles e, apesar da benesse, não levam vidas descansadas. Pelo contrário: estão invariavelmente mergulhados numa angústia e numa ansiedade de contornos particularmente patológicos. Percebo porquê. Há cem ou duzentos anos, a vida dependia do berço, da posição social e da fortuna familiar.


Hoje, não. A criança nasce, não numa família mas numa pista de atletismo, com as barreiras da praxe: jardim-escola aos três, natação aos quatro, lições de piano aos cinco, escola aos seis, e um exército de professores, explicadores, educadores e psicólogos, como se a criança fosse um potro de competição.


Eis a ideologia criminosa que se instalou definitivamente nas sociedades modernas: a vida não é para ser vivida - mas construída com sucessos pessoais e profissionais, uns atrás dos outros, em progressão geométrica para o infinito. É preciso o emprego de sonho, a casa de sonho, o maridinho de sonho, os amigos de sonho, as férias de sonho, os restaurantes de sonho.


Não admira que, até 2020, um terço da população mundial esteja a mamar forte no Prozac.É a velha história da cenoura e do burro: quanto mais temos, mais queremos. Quanto mais queremos, mais desesperamos. A meritocracia gera uma insatisfação insaciável que acabará por arrasar o mais leve traço de humanidade. O que não deixa de ser uma lástima.


Se as pessoas voltassem a ler os clássicos, sobretudo Montaigne, saberiam que o fim último da vida não é a excelência, mas sim a felicidade!"

14 outubro 2008

Quero Conhecer o Aladino

Do alto dos meus vinte e tal anos só me apetece injuriar os energúmenos que inventaram as típicas histórias infantis e as criaturas boçais que insistem em contá-las, quais cassetes riscadas pela infrutífera passagem dos anos, aos filhos, aos netos, aos sobrinhos, aos afilhados, enfim, a tudo o que acabou de se estrear no mundo com a pompa, circunstância e, quiçá, felicidade da ignorância. Como se já não bastassem as inúmeras dificuldades que qualquer criatura imberbe tem de enfrentar (abandonar o instinto primata de progressão no terreno em quatro patas, conseguir fazer boa figura aquando da deglutição da papa e afins comestíveis, parar de grunhir berros atrozmente medonhos resultantes da abertura pouco parcimoniosa da goela, e aplicar o conceito modernamente higiénico de sanita), ainda a sobrecarregam com as ditas fábulas para crianças! Histórias que pretendem ser fantásticas mas que, na prática e a longo prazo, se revelam lamentavelmente nocivas para o cérebro singelamente ingénuo destas amostras de gente.

Eu própria fui afectada por este fenómeno mitómano perigosamente disseminado por toda a sociedade. Cresci a acreditar que uma data de coisas eram possíveis; baseei todas as minhas crenças e sonhos em alicerces que, à medida que fui crescendo, foram revelando uma consistência perigosamente periclitante. E sofri amargamente quando descobri que todas estas histórias da carochinha não passavam de um tremendo embuste para apaziguar as minhas ansiedades tenras de chavala minorca. Como prova de tudo isto, vou enumerar todas as aldrabices monumentalmente vergonhosas que me contaram, vandalizando-me selvaticamente a mente ao ponto de hoje em dia ser apelidada de louca por ainda desconfiar que o impossível se trata, afinal, de algo amplamente exequível:

O Capuchinho Vermelho
Quem não se lembra da menina, vestida de vermelho, que vai pelo bosque para visitar a avozinha e que, quando está a apanhar cogumelos, ou flores, ou o raio que a parta, dá, subitamente, de caras com o lobo mau? O lobo que, posteriormente, qual fã incondicional do Darwin, a vai tentar ludibriar com os argumentos de que a suas orelhas e os seus olhos cresceram em virtude, única e exclusivamente, das necessidades impostas pelo meio exterior. Este diálogo entre a netinha e a pseudo avozinha tem um je ne sais quois de perverso que agrada à maioria dos futuros tarados.

No entanto, as incongruências da história são muitas. Por exemplo, não obstante o sacana do lobo comer a avozinha, a dita idosa não só não morre, como o caçador faz o obséquio de a retirar da barriga do quadrúpede maléfico, atafulhando-lhe o bucho com uma colecção de pedregulhos. Logicamente, com este exemplo, cresci a pensar, não só que na sequência de ingerir um bife, me podia sair disparada uma vaca pela cavidade abdominal, como também que nunca se morre, e que o Bem vence sempre o Mal, sendo este último eternamente punido pelas suas infâmias. Até agora não vi nada disto a ser posto assiduamente em prática no ringue bárbaro e mortal da humanidade.

O Pinóquio

Este monstrinho de madeira vinha sempre à baila quando o objectivo se tratava de nos dissuadirem de mandar tangas. “ Olha que te cresce o nariz!”; “Olha o que aconteceu com o Pinóquio!”; “Se não queres ficar como ele não podes mentir!”
Desde quando é que uma mentira faz com que as narinas se dilatem e se contorçam até se expandirem monumentalmente para a frente? Se assim fosse, o nariz de quem nos contava este absurdo, já era demasiado infinito para ser, sequer, medido.

O Príncipe Encantado

O popular Príncipe Encantado, um garanhão irresistível e bondoso, fez as suas primeiras aparições na Cinderela e na Bela Adormecida, e, foi tal o seu sucesso, que a sua figura de cavaleiro andante se perpetuou no tempo, tendo sido incluída em todos os filmes românticos da Humanidade desde então. O problema acerca desta personagem apetecível é que faz com que toda a vida membros de ambos os sexos deambulem por aí, esperançosamente e com requintes de desespero, no intuito de encontrarem a pessoa mais que perfeita, a pessoa que na realidade não existe, porque, obviamente, para habitarmos racionalmente este globo imperfeito, temos de ser humanos, o que consequentemente significa: algo defeituosos. E, ainda que assim não fosse, desconfio que, no caso de certas mulheres, se o dito príncipe nunca lhes chegasse a cavalo ou de outra qualquer maneira assaz pomposa, nenhuma acreditaria que se tratava realmente do elemento da realeza porque esperaram embasbacadas, aturdidas pelo bater das doze badaladas e zonzas pela ressaca das abóboras, durante uma vida inteira.

A História da Carochinha

A Carochinha ensina às moças casadoiras a melhor estratégia para pescarem um noivo à maneira. Segundo a história, basta tomar um bom banho, vestir um vestidinho da moda e ir até à janela gritar a célebre frase: “Quem quer casar com a Carochinha que é bonita e perfeitinha?”. E é garantido que o João Ratão vai aparecer mais tarde ou mais cedo. A técnica usada é parecida com os pregões da praça utilizados na venda do peixe, pelo que concluo que as profissionais deste negócio não devem ter falta de maridos, ao contrário de muitas outras, fiéis praticantes de outros ofícios, que, à luz do sucesso da bicharoca bicolor, deviam parar de se inscrever em agências matrimoniais, estancar todas as actividades coquetes empreendidas na caça ao homem e ir para a varanda acenar aos transeuntes. Que bonito o mundo seria se as mulheres seguissem à risca este conselho e se tornassem meros bibelôs falantes a adornar o betão da civilização!

Os Três Porquinhos
Nesta história são exaltados os esforços e empenho do terceiro porquinho que luta para construir uma casa de pedra, enquanto que os seus outros dois irmãos de pocilga coçam a pevide. O desgraçado do lobo, eterno massacrado dos contos infantis, torna a sofrer as consequências do seu apetite voraz e acaba esfrangalhado num caldeirão. Aqui, a lição a retirar é a de que toda a gente é recompensada pelo seu trabalho... A minha mente vacila sobre a veracidade desta premissa...Imagine-se que o filho do terceiro porquinho herdava a fortaleza de pedra construída com o suor malcheiroso do progenitor suíno, onde é que fica a moral da história com esta alteraçãozinha banal?!? É caso para dizer que, neste caso, a moral da história vai com os porcos...Está mal! Não vivemos em nenhum antro bolchevique e, como tal, todas as tretas que nos contam desde chavalos deveriam reflectir a democracia moderna que, ainda que muito timidamente, nos rege.

A Branca de Neve e os Sete Anões
No que respeita à Branca de Neve, essa devassa que não se consegue contentar só com um anão, há que dizer que constitui um hino escabrosamente perigoso à poligamia que, como se sabe, é estritamente proibida e condenada pelos povos ocidentais. É vergonhosa esta plantação precoce das sementes da variedade sexual socialmente aceite nas fantasias dos putos, quando a sua futura matança com desfechos monogâmicos é algo que já se conhece à partida.

Concluindo e resumindo: fica aqui o meu modesto apelo para a substituição destas mais que ultrapassadas quimeras por histórias da vida real, mais ao estilo do Gato das Botas (o gatinho dócil que só precisa de um saco e de um bom par de sapatos para desvelar a sua astúcia através de actos tão perniciosos como ameaçar, enganar e matar) que, ao invés de deturparem cerebrozinhos em formação, vão apenas prepará-los para enfrentarem a autêntica selva que é o mundo! Estas invenções calamitosas são contraproducentes pois, na realidade, destinam as criancinhas indefesas a um futuro de revolta e infelicidade. Já para não falar do seu contributo na deturpação da imagem do lobo mau, um ser apresentado como supostamente vil mas que, contudo, se limita apenas a colocar em prática os seus fisiologicamente incontroláveis instintos de sobrevivência, como qualquer compêndio de Biologia poderá facilmente atestar.

PS: Passados estes anos todos, e não obstante o meu cepticismo antagónico em relação a estas histórias infantis, continuo a querer conhecer o Aladino. Acalento secretamente o sonho de lhe espetar um balázio na tromba mal ele me informe sobre a localização da lâmpada mágica com o respectivo génio que nela habita. Porque eu tenho muitos sonhos e porque eu sei que o génio, por ser dessa classe à parte da genialidade, não ia faltar à promessa que fez de conceder três desejos a quem o liberte do receptáculo onde está enfiado há milhares de anos.