22 outubro 2008

Meu velho amigo e camarada Parente





Por: António Centeio

Estava ausente quando soube da notícia do falecimento do meu velho amigo e camarada Parente. Ao receber a informação da fatalidade a minha alma transfigurou-se de tal forma que as lágrimas se derramaram pela face como tivesse sido molhada por uma torrente de água. De imediato regressei para que não faltasse ao seu funeral. Assim aconteceu.
Ainda criança quando via a minha pessoa chamava-me logo para saber onde andava e o que estava fazendo. De seguida dava-me conselhos de toda a espécie para que quando um dia “fosse um homem, soubesse honrar quem me deu vida” porque “estes mereciam tal coisa”. Marcou-me profundamente. De tal forma que o considerava como o “meu melhor protector e o melhor professor das coisas da vida,” quer pela sua experiência como ainda pela maneira de falar e sabedoria. Eu era a criança que ele adorava. Encarava-me como seu “favorito” talvez pela amizade que o unia a meu falecido pai como a estima que a minha família lhe merecia.
Sobre a sua pessoa, lembro-me de ouvir as mais variadas e pitorescas histórias que fazia como o imaginasse numa espécie de centurião romano ou um musculoso homem de outro planeta em virtude de seu enorme corpo e cara de respeito que apresentava para com todas as crianças. Algumas não passavam de lendas mas outras eram verdadeiras. Que eu saiba nunca casou e muito menos viveu com mulher alguma mas sabia -porque me disse – que visitava de tempos a tempos a “casa das meninas” onde satisfazia as suas necessidades. As histórias originárias destes encontros ensombraram durante algum tempo a minha imaginação sobre os prazeres da luxúria como me espevitava o caminho para a curiosidade de saber se na verdade a coisa era tão boa como Parente dizia. O tempo se encarregou de ensinar que na verdade ele era um “mestre na arte”.
Originário de famílias de posse, bem cedo se separou de quem o estimava, dispensando ao mesmo tempo a fortuna que os “seus lhe tinham destinado”. Sempre quis viver do que ganhava e levar a vida que gostava. A sua liberdade por preço algum trocou, ao ponto de feito homem, os familiares se envergonharem da sua situação precária e das pobres condições em que vivia. O que lhe interessava era a sua felicidade. Pura e simplesmente marimbava-se para o que diziam e pensavam dele. Sempre satisfeito com a vida ensinava aos mais pequenos – tipo de gente que adorava «nunca devemos deixar de ser aquilo que somos mesmo contrariando a vontade ou os desejos dos outros”. As crianças quando o viam na rua era como vissem o deus dos deuses. A gritaria entoava pela rua e toda a gente ficava a saber que Parente estava rodeado dos mais pequenos. Era a sua alegria e felicidade. Os seus enormes dentes mostravam a grandeza da sua alma. Um homem pronto a fazer e a dar o seu melhor pelos outros sem nada querer em troca.
Quando me fiz homem e iniciei o percurso da vida Parente seguia-me de perto. Se por alguma razão a ausência do seu predilecto se prolongava ia recolher as informações necessárias para saber do ponto da situação: se não lhe agradasse o que ouviu, desbravava caminhos e encruzilhadas para me ver ou aconselhar daquilo que considerava o “melhor para mim”. A experiência da vida ensinou-me que os seus conselhos eram os melhores e os mais certos.
Do meu velho amigo e camarada Parente nunca me esquecerei daquilo que sempre ouvi dizer como algumas vezes cheguei a testemunhar:
Decorria a década de cinquenta do século passado. A sala do cinema compunha-se de várias filas de cadeiras. Distribuídas por classes, davam-lhe os nomes de: “Geral (que chamavam também de piolho) Plateia, Balcão e Camarotes”. No primeiro andar, tipo meia-lua, o “Primeiro e Segundo Balcão”; nos cornos da lua, encaixava-se uma meia dúzia de camarotes, a puxar para o finório com a ajuda de carteiras bem recheadas. Era o espaço dos senhores janotas e das madames vistosas. O “camarote” mais distinto estava reservado “perpéctuamente” ao fiel cliente, conhecido por Parente.
A alcunha, vinha por esta figura, considerar nas outras, um laço familiar como que, sendo todos descendente da mesma espécie. De pouco valia argumentar. A origem da família, para o Parente estava escarrapachada no Livro do Mundo a que chamava de Divino. Se em causa fosse posta a sua teoria, enviava os contraditores para a casa do pároco, que mais do que ninguém lhe servia de testemunha.
Um homem aí na casa dos cinquenta. Bem encorporado, possuidor de uma voz rouca que até fazia estremecer quando levantava o timbre. Solteiro, residente numa casa térrea, de uma só divisão, onde numa das paredes tinha pendurado uma velho relógio de capelinha, que para a rapaziada com menos de uma dezena de anos «era um rato amigo do dono que dava corda ao marcador de horas». Com profissão desconhecida mas sempre com uma carteira apetrechada de trocos. Os suficientes para gastar a seu belo prazer e dar a quem só ele entendesse necessitar.
Homem estranho, gozado pela canalha mas temido pelos grandalhões ou seus iguais, de alma, porque fisicamente estavam a léguas de distância na força e tamanho.
Agarrava em duas sacas de cimento de cada lado do corpo – pesando cada uma cinquenta quilos – seguras pelos braços que ao subir a escada em vez de ser ele a cair com tal peso, eram os degraus que se partiam. Homem estranho como esquiva era a sua maneira de viver.
Mal abria as portas do “Cine” Parente tinha que ser o primeiro a entrar. Ia directamente para o seu “camarote”. Sentava-se, cruzava a perna, para de seguida começar a ler o jornal, com os seus óculos de sol – lentes bem escuras – que o acompanhava quer fosse de dia quer noite, Inverno ou Verão.
A sala ia enchendo, vendo-se aos poucos, as cadeiras – conforme os bilhetes iam sendo rasgados pelo porteiro – a dar forma no interior da casa de espectáculos como a garantir aos pagantes que a sessão ia ser boa; o contrário era sinal de má escolha. Na hora anunciada desligavam-se as luzes para logo rodar a fita da sétima arte.
Parente pouco ligava à rotina como ao desenrolar do filme para continuar a ler o tabloide, vindo de não se sabe donde.
De algures, ouvia-se uma voz «Oh Parente, está a ler às escuras!». Ria-se para dobrar o jornal, metendo-o de seguida no bolso de casaco. No intervalo, era o seguimento do que não foi acabado.
Mais uma vez a voz estranha clamava « Parenteee!....., o jornal está ao contrário! Está a ler as notícias de pernas para o ar!» E, estava mesmo, porque o Parente não sabia ler. Apenas gostava de exibir a sua ignorância – para os outros – de homem simples com sonhos de grandeza como os seus cultos vizinhos de camarotes situados a bandas do seu – os debaixo, eram da classe média.
Era boa pessoa. Continuamente sorridente mas inseparável da sua gasta folha de periódico como dos seus velhos “Óculos de Sol” comprados por tuta-e-meia em qualquer banda que nem ele próprio sabia. «Comprei-os a um contrabandista que por aqui passou, depois de finda a Grande Guerra». Verdade ou mentira, nunca se apurou.
«Aí está ela!»
Era a Sara Montiel a artista preferida de Parente e a personagem principal do filme. A “Plateia” batia palmas ao Parente salvo quando os do baixio apanhavam na cabeça as cangalhadas e cascas de amendoins que a classe finória mandava para o vazio.
Era logo um banzé na choldra. Neste momento o corpanzil do Parente erguia-se em plena escuridão para admoestar a populaça «calem-se suas cavalgaduras que quero ouvir a Sarita». Calavam-se mesmo.
Velho e amigo camarada Parente como a sua ordem era respeitada, mesmo que lá no fundo, todos gozassem com as saídas inesperadas do Parente.
Uma figura castiça que memorizou histórias do arco-da-velha nas gerações seguintes; história adulteradas que inferiorizam Bocage.
Belo dia de Carnaval, subiu com a sua pasteleira, até meio, a íngreme rua. O restante foi a pé, segurando o transporte pela mão, levando em cima do guiador do velocípede, um par de cornos, comprados na manhã do dia, no talho do Felismino.
Chegado ao cimo, monta-se em cima do selim, seguro pelo quadro de aço alemão e assente em duas rodas com locomoção humana, para descer com toda a sua força muscular, muito própria de quem a tinha, ganhando uma velocidade tonta. Às tantas perdeu o equilíbrio para se estampar de rejeitada em cima do passeio empedrado. Como caiu como ficou. O corpo todo estendido assustou o mulherio que gritou logo por socorro. Tinha havido um acidente grave: a vítima não era nem mais nem menos do que o Parente.
«Ai que o Parente morreu! Chamem uma ambulância»
Estavam os maqueiros colocando o folião na maca, quando o morto se levanta, gritando «Alto e pára o baile, que o artista nunca morre no filme!»
Aquilo é que foi uma gargalhada. Só o Parente para fazer uma cena destas. Durante semanas, logo conhecida a coisa da canalha, foi o tema mais falado na escola.
Parente foi durante anos o ídolo da criançada. Bastava ser visto por um, logo outros se juntavam em grupo como bando de pardais.
Quando um dia correu a noticia que Parente «foi desta para melhor» – ainda por cima no dia dos finados – toda a gente das redondezas fez questão de acompanhar o corpo à ultima morada. A figura mais típica da terra, quando dentro do caixão, foi cercada por pessoas, que ele próprio se fosse vivo, nunca tinha visto de lado algum.
Quem gostava de andar em cima da terra passou a estar debaixo dela. Muitas lágrimas se derramaram naquele dia de infelicidade e muitos lenços foram lançados para cima do baú rectangular de côr castanha.
Aí, meu velho amigo e camarada Parente todos te recordam e todos nós falamos de ti, como no nosso meio estivesses.
Recentemente, no Carril, depois de passadas algumas dezenas de anos, após a sua morte, colocaram seu nome e alcunha numa rua para que seja lembrado enquanto a memória dos vivos recordar o Parente. Vale mais tarde do que nunca.
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