“O teu nome
até os objectos o sabem
quando nos pedem um uso diferente
os objectos tão gastos tão cansados
da circulação absurda a que os obrigam”
Alexandre O´Neill
Estavam ambos sentados num dos bancos azuis e encarnados do metro. Pareciam alheios às pessoas que se iam amontoando na sua periferia, a maioria delas de pé, a sofrerem as sacudidelas típicas do rolar das carruagens sobre os carris.
Ela, com a mala meticulosamente colocada sobre o colo, fixava com o olhar vago um qualquer ponto invisível, talvez tentando encontrar a imagem perdida que costumava ver e rever nos seus sonhos de criança, com a espontaneidade robótica que a esperança propicia, e que, agora, estava a custar tanto encontrar no meio de todas as imagens que compunham o seu álbum da alma, progressivamente enlameado pelos anos. Ou, talvez, sentindo desde à muito este paradoxo frustrante dentro de si, estivesse apenas a tentar ignorar o metro, as pessoas, a carruagem vestida de azul e encarnado, aquela manhã em que o mesmo trabalho de sempre a esperava uns metros à frente, e todos os outros ingredientes que compunham o círculo fechado dos seus dias. Com as pupilas dilatadas pela urgência de fixarem apenas o vazio, talvez tentasse apenas ignorar a sua própria vida.
Ele, embrulhado num casaco de cor parda, talvez comprado nos saldos à cinco anos atrás porque “isto a vida está cara e nunca, jamais, se podem cometer excessos”, manobrava repetidamente a caneta do seu PDA, distraindo-se, talvez, com uma qualquer actividade arrancada ao desejo profundo de sobressair na massa anónima composta pelas formiguinhas do metro; afinal, não é qualquer um que possui um PDA e, muito menos, é qualquer um a quem urge a necessidade de o manusear durante a curta e matutina travessia subterrânea pela cidade. Talvez queira aparentar ser um grande homem de negócios; contudo, a ausência do fato de boa fibra, da gravata à moda e da aura resoluta e confiante, resultado do coleccionar incessante de demonstrações de um intelecto brilhante, denuncia uma profissão bastante mais humilde. Talvez trabalhe nos correios. Ou, talvez, seja um mero empregado num qualquer departamento numa qualquer empresa. Tem, definitivamente, o ar atarracado de funcionário a quem os abusos de poder do patrão fizeram mirrar as costas.
“Campo Grande, Cidade Universitária, Entrecampos, Campo Pequeno, Saldanha” – as estações sucedem-se freneticamente umas às outras.
“Próxima estação: Picoas” – anuncia a voz feminina que sai mecanicamente dos altifalantes, colocados estrategicamente para ressoarem em todo o espaço azul e encarnado, iluminado por um fluorescente hostil que pretende mostrar a realidade crua e friamente, função que desempenha com mestria.
Chega então o momento em que ela se vira, pela primeira vez, para ele. Pronuncia um até logo enfastiado; um até logo que, talvez pela força das circunstâncias, tem mesmo de ser um até logo e não pode ser outra coisa qualquer. Dão um pequeno beijo na boca. O leve roçar casto dos lábios dela com os dele faz estremecer a carruagem, provocando um murmúrio metálico, como que uma manifestação da surpresa do próprio universo, revoltado com a nudez de sensualidade deste gesto, supostamente um dos símbolos mais sublimes da paixão. É então que se conseguem vislumbrar as alianças a agrilhoarem os seus dedos anelares; são, indubitavelmente, casados um com o outro. Não podem, no entanto, ter contraído os laços sagrados do matrimónio há muito tempo, dado que as suas fisionomias revelam uma idade compreendida entre os trinta e os trinta e cinco anos.
Ela levanta-se com a compostura rígida de quem não conhece gestos diferentes talvez porque, à falta da audácia da imaginação, repete vezes sem conta os mesmos movimentos limitados pela rotina simétrica dos dias. Ele continua, impávido e sereno, a espicaçar o ecrã do PDA, com a constância dos trejeitos obsessivos que se tornam o oxigénio de uma vida.
Trazem ambos uma expressão de enfado no rosto, própria de quem já não se diverte há muito tempo. Talvez já nem saibam o que é isso da diversão: “Isso é para os outros, os inconscientes que vivem sem preocupações”. Talvez segundas, terças, quartas, quintas, sextas, sábados e domingos saltem sucessivamente do seu calendário, pendurado na parede da cozinha desde o início do ano, a um ritmo cada vez mais idêntico. Talvez o acordar, o almoçar, o jantar e o deitar se desenrolem sempre escrupulosamente à mesma hora e da mesma maneira. Talvez aos sábados se entretenham a visitar os pais dela durante a tarde e os pais dele durante a noite e, ainda que a conversa esteja a pedir mais palavras nesses serões, as calem até ao próximo sábado, porque os ponteiros do relógio indicam a hora religiosa de ir para a cama, e não se pode desobedecer a esse general do tic-tac que é o tempo. Talvez reservem a manhã de domingo para o prazer carnal, que vai sendo cada vez menos prazer e cada vez mais o mero cumprimento de um dever imposto pela carne, mais uma maçada à espera de ser consumada. A mesma carne que toma todos os dias banho durante rigorosamente dez minutos, “que isto a conta da água é um balúrdio”, com a espuma do sabão de glicerina, cada vez mais escorregadio, talvez por estar farto ser sempre ele a ser utilizado nas barrelas daqueles dois seres; afinal há tanto sabonete diferente e tanta variedade de gel de banho à venda no supermercado! Talvez comprem sempre a mesma quantidade e as mesmas coisas no supermercado; para quê experimentar produtos diferentes se podem correr o risco de não gostar? Para quê, aliás, correr qualquer tipo de risco? Pode-se tropeçar e cair e estatelar a alma ou outras coisas igualmente importantes no chão, o que representa um perigo que só os inconscientes podem estar dispostos a correr. Eles, com orgulho, não são inconscientes, aliás, eles até talvez se achem superiores aos outros por não serem inconscientes.
Talvez, com o volver dos anos, o deserto que criaram nas suas vidas, se resolva num grande oásis de frustração onde passarão a viver permanentemente, ela com as saudades eternas dos sonhos que viu a vida desfazer e ele a tentar ignorar o tempo, cada vez mais agoniado com o bambolear ininterrupto da caneta do PDA entre os seus dedos periclitantes. Talvez se apercebam então, quando o marulhar da morte surgir perfilado na sombra que arrastam pesarosamente atrás de si, que talvez tenham vivido sem verdadeiramente viver. E talvez aí já seja tarde demais…
10 dezembro 2007
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