01 fevereiro 2008

Para a doutora, um burro carregado de couves


Por: António Centeio
Januário homem que já carrega quase oito dezenas de anos continua a querer mostrar que não se verga ao tempo e às coisas. O que lhe interessa é o seu espírito jovem e a pujança que sente dentro de si como das “forças vindas de um sítio qualquer” que não lhe impedem de todos os dias fazer a “amanha da sua terra”.
Todos os dias, quando se levanta e o Sol ainda está do “lado de lá de Espanha” depois dos preparos matinais senta-se na sua velha mesa para comer a sua “côdea acompanhada de um bocado de chouriço” para de seguida partir na desengonçada carroça puxada pelo “Jericó” o nome do burro, cuja idade do dito desconhece, porquanto já o comprou como “um burro velho” a um cigano numa Feira de Gado que se costuma realizar ali para os lados de Vale de Santarém.
Paragem obrigatória se torna a visita matinal na “Tasca do Fausto” a fim de tomar o seu caneco de café e respectivo bagaço em duplicado que lhe retemperam as forças para o dia que ainda não viu nascer a bola de fogo, mas que dele muito vai exigir.
Quando chega à sua herdade, a que chama de “Terra Seca” começa a tratar da “amanha” e de tudo que esta lhe pede para que “amanhã nada lhe falte como aos intermediários que o visitam para negociar o que a terra vem dando, julgando alguns que enganam o amigo Januário pela sua avançada idade” quando na verdade o conhecimento que foi adquirindo ao longo das luas, lhe deram sabedoria para numa cantilena cheia de manhas conseguir dar a volta a quem com intenção quer-lhe passar a perna. Assim e desta forma, tem conseguido levar a sua a avante “sem enganar o parceiro, como: deixar-se enganar”.
Apenas, e confessa, que o seu único fraco, mesmo com a idade que já leva, são as mulheres. Estas ainda continuam a apoquentar-lhe a cabeça e quando vê alguma saia, então a sua cabeça fervilha de coisas que já não estão a seu alcance.
Homem de uma enorme robustez física com um olhar profundo que “até queima por dentro quem para eles olha” tal é a nitidez do azul. Quanto a médicos apenas afirmava “não querer nada com eles” e no que tocava a doenças “nunca as teve”. Mas se as tivesse tido simplesmente encontraria a cura na “apanha das erva” que a sua avó lhe ensinou “servirem para curar todos os males, até os da língua”.
Nunca recusou ajudar quem quer que fosse como contribui com o que esteja ao seu alcance, desde que possa extrair no que plantou ou a “Terra Seca” por razões desconhecidas lhe coloque na frente dos olhos aquilo que outrém possa usufruir.
Tudo isto até ao dia em que a sua calvície não resistindo ao calor da tarde cedeu aos infortúnios daquilo que a idade não perdoa. Deu-lhe um fanico qualquer que tombou de imediato para o cimo do canteiro de salsa que andava a regar. Valeu-lhe a visita inesperada de uma sua protegida, que de tempos a tempos o visitava para o consolar de algo que gostava mas não tinha e ao mesmo tempo lhe transmitir as últimas novidades do burgo já que o amigo Januário não era homens de mexericos ou de andar “sem nada fazer por locais onde se diz mal de todos e se gasta dinheiro sem necessidade”.
Quando não havia bisbilhotices a idosa inventava-as. Apenas não dizia mal de si própria, porque lhe ficava mal ou o ouvinte não acreditava no que acabava de saber. Mulher astuta que sabia “tirar os ovos debaixo da galinha sem ela dar por isso” pouco se lhe importando se: tivesse ou não de deitar-se debaixo de qualquer um, desde que, pudesse “levar para sua casa aquilo que não tinha”.
Aos gritos veio pedir socorro à aldeia que num ápice, alguém, depois de ouvir o sucedido pediu ajuda aos bombeiros. Em pouco minutos Januário estava no hospital. Neste, se manteve uma dúzia de dias sempre assistido por uma linda e simpática doutora.
Dada autorização para sair, pelo seu próprio meio, por via de estar curado, criou-se-lhe o problema de “como agradecer a gentileza a quem o tão bem tratou a cuidou”. Homem desconhecedor das modernices que fazem parte do mundo em que vive como de outras novidade e ignorante que continua a ser, daquilo a que alguns chamam de “boas-maneiras” já que os seus nunca lhe ensinaram “que tal coisa quer dizer”. Para agravar as regras já que no amanho da terra nem sempre se aprende aquilo que se deveria aprender na escola, na sua voz grosseirona, mas sincera, vai daí, perguntou a quem tanto o importunava com cuidados e outros mimos ”que quer como gratificação pelo que me fez?”
Da mesma, teve como resposta: “Nada! Apenas fiz a minha obrigação como faço para com todos os doentes”. De seguida, recebeu como sinal de carinho e respeito um beijo na cara, coisa que não estava nos pensamentos do madrugador.
Não ficando satisfeito com a recusa mas sentindo-se na obrigação de recompensar, agora mais do que nunca, porque a doutora até lhe “deu um miminho na cara” foi para casa matutando na forma de contornar a coisa. Não encontrou solução ao problema nem soube descobrir outras formas. Homem habituado aos imprevistos e às partidas do tempo ouviu, vindo das “profundezas da terra” a solução.
Poucos dias depois, apresentou-se no Hospital pedindo a presença da dita especialista. Depois de informada de quem a chamava do exterior, compareceu ao apelo. Perguntando-lhe o que desejava, obteve como resposta “ minha linda e bondosa doutora, vá ali à rua e veja com os seus próprios olhos o que lhe trago como agradecimento pelo que me fez e como me tratou”. Em cima de “Jericó” estava um enorme carregamento de couves.

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente, eu não conheço o autor mas por mim pode continuar com a escrita. Só é pena é a história ser num mundo irreal para os tempos de hoje