12 fevereiro 2008

Sou o Valentim e sou Foleiro!

Advertência: Todos os que acham um máximo ursos sufocados por corações, postais repletos de lugares comuns, músicas com letras como, por exemplo, as do André Sardet, e tudo o que se pareça com este tipo de coisas: NÃO LEIAM O QUE SE SEGUE! Isto não é para vocês! Dirijam-se a outros blogs! Dêem de frosques desta página! Se, ainda assim, todos estes avisos não bastarem para vos persuadir a bazar daqui, aguentem-se e não me chateiem depois com comentários rascos!

Perdoem-me os adeptos do Valentim, que devem ser muitos, mas eu acho este dia uma foleirada! Cada ano que passa, assiste-se a um consumo cada vez mais desenfreado de objectos delineados por contornos de bom gosto duvidoso. A corrida a relógios, molduras, almofadas, cinzeiros, porta-chaves, canecas, lenços e ursos, entre outros, sobrecarregados de corações mal paridos pelo marketing do amor, processa-se sem o garbo dos travões a impedir a compra destes verdadeiros mamarrachos. O mau gosto espraia-se pelas lojas, pelas páginas das revistas, pelos anúncios de televisão, pelo som cavo da rádio e pelo preto e branco dos jornais, obrigando o desgraçado do amor a sair à rua sem o mínimo decoro, em trajes reduzidos pela premência da exposição, uma mera formalidade da aparência, sem a qual parece que nada existe hoje em dia!

Claro está que, como as pessoas não resistem aos apelos da moda, quem se recusa a pactuar nesta quermesse, a transbordar de bibelôs pirosos e alagada por frases pré-fabricadas pelo sentimentalismo fácil, é porque é insensível e não sabe o que é o amor. Falo por experiência própria.

Certa vez, tentei-me armar em discípula do Valentim, ainda que tentando manter um certo cunho pessoal, e ofereci ao meu namorado na altura um coração em papel em que um dos lados dizia: “Sou o coração da Sara e pertenço-te.”, enquanto do outro lado comunicava: “Sou muita foleiro, não sou?!”. Nem me quero recordar da discussão escabrosa que esta última frase provocou. Parece que consegui estragar todo e qualquer clima romântico com tamanha alusão. Fui acusada das coisas mais atrozes possíveis, entre as quais de estar a gozar com os sentimentos, e de, consequentemente, andar com a alma a tiritar de frio, coberta apenas pelos agasalhos esparsos da insensibilidade. No entanto, em minha defesa tenho a dizer que, para a Sara, tal como a Sara era e é, seria impossível declarar de outrem a posse do seu coração, pelo simples facto de que isso representaria uma enorme mentira. Senão, veja-se, o coração de Sara encontra-se irremediavelmente encerrado no tórax de Sara, obsequiando as leis da Natureza. Claro que, metaforicamente, o coração de Sara poderia, de facto, pertencer ao dito namorado, mas Sara nunca iria usar uma metáfora tão afastada da realidade e, como tal, de tão fácil elaboração como esta. Sara nunca escreveria aquele postal a sério. Sem fazer referência ao mau gosto do mesmo, aquele postal nunca seria um postal de Sara. (Aparte: é giro falar de mim na terceira pessoa, dá assim um ar importante; o Júlio, o César é que tinha razão!)

Enfim… Abandonei imediatamente a minha tentativa de verbalização de sentimentos de acordo com as premissas modernas, não só em dias marcados no calendário como especiais mas também em todos os restantes dias do ano. Note-se que não tenho absolutamente nada contra o S. Valentim, um padre que acabou decapitado no dia 14 de Fevereiro após ter continuado a celebrar casamentos contra a vontade do seu imperador romano, e que, ele próprio, acabou apaixonado por uma rapariga a quem este amor curou a cegueira. A minha revolta é com o que a sociedade fez do Valentim e do amor. A subtileza sempre me pareceu fundamental em tudo na vida. Os meus padrões estéticos são demasiado susceptíveis e chocam-se facilmente com meros telegramas ruidosos e primários do coração.

Até já me pus a queimar neurónios com o poema do Fernando Pessoa que diz:

“ Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas

(…)

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas”

Já me pus a pensar seriamente se, afinal, não seria eu a ridícula que nunca experimentou o êxtase de uma carta de amor à maneira, repleta de frases do estilo: “És o sol da minha vida”, “Não consigo viver sem ti”, “Sangro cá dentro com a tua ausência”, e por aí fora. Mas, após ouvir uma multidão a cantar com o desbrago da lágrima, uma toxicodependente eterna da pirosice das palavras, a música “O Feitiço” do André Sardet, em que a melodia entoa languidamente: “Não sei se é feitiço o que é que me deu, para gostar tanto assim de alguém como tu”, percebi que prefiro ser ridícula a escrever, dizer, ou encantar-me com barbaridades como esta, em que é o próprio a admitir que foi preciso um bruxedo para gostar tanto assim de alguém como gosta da destinatária do poema; infelizmente ou felizmente, não sei bem, não consigo ficar pedrada com a lamechice como muitas pessoas. O meu gosto, quiçá ridiculamente subtil, não deixa de achar que a amada do André Sardet deve ser muito feia, ou muito burra, ou muito má, ou mesmo padecer destas três fatalidades ao mesmo tempo, para ele precisar de tamanha macumba para gostar dela.

Prefiro, eventualmente, ser insensível, fria e apelidada de ridícula pelo próprio Pessoa a, de acordo com os meus padrões estéticos, ser foleira! A fronteira que separa o belo do resto é subjectivamente ténue.

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