Nunca fui a muitos velórios na minha curta vida de pita acabadinha de sair da faculdade mas com a mania que sabe muito. A maioria das pessoas com quem me relaciono felizmente ainda não teve a honra de privar com a morte, essa mulheraça esbelta, sempre com a foice em riste, revelando tendências sadomasoquistas, apreciadas por muita gente, pelo que sei. Penso que um dos primeiros sintomas do envelhecimento e, portanto, da extinção do meu estatuto de pita, vai ser o crescente bombardeio com convites, vindos do além, para velórios e funerais; o que levanta uma questão interessante, nós, seres humanos tão respeitosos quando se trata das conveniências impostas pela sociedade, vamos a velórios sem sermos oficialmente convidados para tal. Sim, porque, que eu me lembre, nunca vi convites embrulhados em papel de seda para eventos de natureza fúnebre. Grande falha de organização que este facto revela acerca do mundo em que vivemos! Se ninguém é convidado oficialmente pelo anfitrião, como saber quem são os penetras? Na minha opinião, algo varrasca admito, devem haver muitos penetras nos velórios, à cata dos bolinhos com marmelada que, às vezes, se oferecem, ou dos cartõezinhos, magnificamente plastificados com a foto do defunto, ou à procura de uma oportunidade para consolar mais intimamente a viúva ou o viúvo, a filha ou o filho, a prima ou o primo, a enteada ou o enteado, a amiga ou o amigo, ou quem quer que seja que tenha a torneira dos olhos desamparadamente aberta, e precise que as suas carnes chorosas sejam carinhosa e inofensivamente afagadas num momento tão enfardado de tristeza. Por enquanto ainda não me tenho de preocupar, mas quando a patifa da morte acabar de estrangular a geração dos meus pais, pronto, será a hora de me consciencializar que passei para a linha da frente da barricada; e, ainda que contrariada, vou ter de seguir firme e hirta com o meu pelotão, marchando ao ritmo do coração, já amigado com a dita cuja pálida, esquelética e com a qualificação distinta de mestre na arte de ceifar vidas.
Os velórios em que já tive a oportunidade de participar afiguraram-se-me todos muito enfadonhos. O que está mal! Um velório tem um status tão importante na jornada da vida como um baptizado ou um casamento! E, que eu saiba, nos baptizados e casamentos, costuma haver festa da grossa! Em conversa com o meu amigo André Rosa (é preciso notar-se que um nome assim já diz tudo acerca da pessoa em questão, revelando uma personalidade fora de série; diria mesmo que André Rosa, com as suas camisolas das Tartarugas Ninja e do Um Bongo, é um autêntico génio de sedução e inteligência!) chegámos à brilhante ideia de iniciar uma empresa especializada em velórios.
Na nossa opinião, há que celebrar a morte! Ela é a passagem para a outra vida, mesmo que a outra vida seja sermos um dos átomos de carbono que compõe o esterco expelido pelo enorme bujão da vaca, há que celebrar a morte! Neste contexto de celebração, a nossa empresa propõe-se em realizar velórios à medida dos gostos de cada defunto, como que uma última homenagem à sua vida. Por exemplo, se o defunto for apaixonado pelo mar, organiza-se um velório em forma de regata; caso goste de desportos motorizados, um velório no Autódromo do Estoril assenta lindamente; se os seus gostos forem mais perversos e se, em vida, tiver sido um cliente assíduo do Elefante Branco e de outros antros da putaria, prepara-se um velório na Passerelle, no Champanhe ou mesmo no Avião (dependendo do orçamento disponível), com direito a shows de striptease durante todo o evento; na hipótese de ser uma defunta viciada em roupa e todos os géneros de compras, improvisa-se um velório mesmo no meio do Colombo; na eventualidade do defunto ser um agarrado, existe a possibilidade de se realizar um velório na Colômbia no meio de um campo de papoilas. A minha mente, conjuntamente com a brilhante mente de André Rosa, arranjaria o cenário ideal para cada situação., em troca de umas boas massas, claro, que eu só me predisponho a queimar neurónios se houver uma qualquer contrapartida que me interesse!
Ao invés do choro lamechas que sucede à morte, os familiares e amigos mais próximos do defunto iriam ter de se ocupar em fornecer-nos todo um conjunto de informações, acompanhado de fotografias e demais documentos, da vida do defunto. Este material iria ser utilizado por mim e por André Rosa na elaboração de uma apresentação em Power Point para apresentar a Deus, que resumisse, de uma forma alegre e bacana, a vida do defunto (note-se a importância de ser em Power Point, noutro suporte qualquer nunca teria tanto impacto, e Deus, amigo do Bill da Microsoft, poderia não gostar de uma coisa foleira, comprometendo assim a entrada do defunto para o tão ambicionado reino dos céus!).
O defunto ocuparia, tal como já acontece, um lugar de destaque no espaço do evento; no entanto, não estaria para ali deitado e enfiado num reles caixote de madeira. Estaria de pé, talvez embalsamado, numa pirâmide giratória feita em cristal da Atlantis e com design assinado pela Vista Alegre. Durante todo o velório, elegantes meninos e meninas em trajes reduzidos serviriam cocktails (os preferidos do defunto, obviamente) e consolariam os convidados mais fragilizados; isto para evitar os já falados penetras.
Por último, haveria um leilão de objectos do defunto; o dinheiro seria distribuído pelos entes queridos mais próximos de modo a estes poderem cobrir as despesas desta grande festarola, e para que eu e o André Rosa, esse grande génio e senhor, pudéssemos andar cada um no seu Porsche 911!
06 fevereiro 2008
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4 comentários:
Simplesmente... fantástico! :)
Simplesmente... fantástico! :)
Bem, como o comentário apareceu duas vezes, se calhar é duplamente fantástico :)))
Modéstia á parte acho que não me enganei ao vaticinar que a Sara tem... qualquer coisa... em relação à arte da escrita.
Mais outro daqueles textos em que apetece dizer "quem me dera ter sido eu a escrever isto.
O Ricardo Araújo Pereira está a dever-me uma boa pipa de massa, pois desde que ocupa a última página da revista Visão, que me obriga semanalmente a comprar quase 200 páginas de revista para poder deliciar-me com o cortejo de palavras com que nos brinda no cantinho da revista.
Ah... e o sacana agora também escreve n'A Bola... ainda por cima ao Domingo.
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