08 janeiro 2008

Avô...

Parece que já foi há muito tempo que vi o teu rosto empalidecer na curva da morte. No entanto foi apenas há dois anos e, obedecendo às leis anárquicas das recordações, o ressoar sonoro do teu riso, o brilho malandro do teu olhar e o ecoar meigo da tua voz, continuam a precipitar-se na minha memória com a intensidade dos acontecimentos recentes, que ainda não ultrapassaram a fronteira ténue que separa o passado do presente. Mais um embuste habilidoso da mente, desta vez ludibriando-nos ao ponto de nos querer fazer crer que a morada do tempo é, afinal, dentro de cada um de nós.

Pensei ingenuamente que algo iria mudar com a tua morte. Mas não. Os dias continuaram a suceder-se uns aos outros com a placidez do costume. Ao Inverno despido de cor, sucedeu-se o florir inebriante da Primavera e, aquiescendo às leis da natureza, o erotismo de Verão voltou a pulsar nos raios de sol e no céu azul que, passado pouco tempo, regressou ao seu estado acabrunhado, próprio do Outono. Descobri assim que o mundo nutre por cada um de nós uma indiferença atroz, confessada em surdina pela torrente imparável dos oceanos, eternamente alheios aos remoinhos que o sofrimento e que a saudade vão insuflando na alma humana.

De facto, o mundo continua igual desde a tua morte. Apenas em mim algo mudou. Foi quando o teu amigo telefonou, naquela tarde em que fiquei a tomar conta de ti, e ao qual tive de dizer: “Não, o avô não pode atender o telefone porque já não anda, já não fala e já não mexe nenhum centímetro do corpo a não ser, ocasionalmente, os olhos”. Foi quando me apercebi, precisamente, que os teus olhos viam e sentiam tudo, ao contrário daquilo que os médicos diziam (quiçá incompetentes, quiçá eternos exploradores), deixando antever para lá das suas circunferências castanhas a tua alma latejante da dor da resignação que, lentamente, foi dando lugar a um desprezo preenchido de dignidade. Foi no momento em que me consciencializei que já não ia presenciar nunca mais o teu riso sonoro, o teu olhar malandro e a tua voz meiga. Foi no dia do teu funeral, quando, entre dentes, parecias ainda sussurrar o “Vou ter tanta pena de vos deixar”. Foi quando comecei a achar que só suportava ver-te naquele estado moribundo porque sei que a tua vida sempre albergou o recheio da felicidade. E foi em muitas outras ocasiões que, por pudor, as palavras não deixam expressar, recusando-se a aparecerem no dicionário.

Desde então, passei a olhar a vida de outra maneira e vou reciclando diariamente o cubo assimétrico da minha realidade sob a batuta audaz dos sonhos e sob a certeza ímpar que o mais importante na vida são as pessoas que amamos, porque são elas que nos fazem continuar a deambular por aí muito depois do corpo ter sido depositado no forno crematório e de chamarem a um pote de cinzas o nosso nome. Tu, por exemplo, continuas a viver através de mim, não só nos genes que ditam o ritmo a que o meu corpo circula, mas também no meu espírito, inequivocamente moldado pelo convívio contigo.

Hoje em dia, sou eu que ocupo o teu lugar na mesa de Natal, nem pensar deixar o teu lugar desocupado à mercê do abismo infinito que é o vazio. E é assim que, com o repicar longínquo dos sinos da missa do galo a segregar lembranças de tempos idos, vou sendo invadida pelas saudades. Quem me dera que estivesses aqui para poder partilhar contigo o meu riso sonoro, para que pudesses vislumbrar o meu olhar malandro e para ouvires o entoar meigo da minha voz…

“É assim a vida”, dizem. Acaba na morte, eu sei. De resto, não sei bem o que hei-de pensar dela. Mas sei que espero vir a reencontrar-te num lugar mais perfeito do que o mundo.

1 comentário:

Vasco Gaspar disse...

Adorei o teu texto. Recordou-me risos, olhares, conversas, vivências. Algo que nunca ninguém me vai tirar e que fazem parte de quem sou.

Obrigado por me teres ajudado a recordar