Ontem, quando cheguei a casa após mais um dia de trabalho árduo, pulei para a banheira, ansiando por sentir o dardejar da água na minha pele, varredora das pequenas depressões cinzentas dos dias em série fabricados pela nossa sociedade evoluída. O duche prolongado, perfumado pelo champô de framboesa e pelo gel de banho de papaia, dissipou, em parte, os odores pestilentos das vicissitudes do dia. Em seguida, os mil e um cremes que coloquei pela cara e pelo corpo, com massagens prolongadas pela preguiça do adiantado do dia, contribuíram também para a mudança da minha expressão, de carrancuda para sorridente. Seguiu-se um jantar saboroso, constituído por um apetitoso bacalhau à lagareiro. Tudo corria bem no conforto do lar.
Passadas umas horas, enfiei-me na cama, muito bem acompanhada por um livro do Asterix, que isto à semana não dá para ler livros muito profundos, propícios às insónias. Abri a gaveta da minha mesinha de cabeceira. O conteúdo da minha gaveta, apesar de me deixar extasiada de prazer, envergonha-me um pouco; como se fosse a minha arca de segredos, ela esconde a prova irrefutável das minhas fraquezas. Vou passar a explicar. A gaveta está atulhada de chocolates: uma caixa de bombons da Guylian, um chocolate da Hussel, três pais natais de marcas diversas, um chocolate da Nestlé, uma caixa de bombons da Milka, uns quantos Kit Kat, um Toblerone, dois chocolates da Cadbury e um conjunto de outros bombons com um nome esquisito, o qual não me recordo. A gaveta está a abarrotar: as minhas guloseimas acastanhadas não deixam espaço para mais nada. Há que constatar a realidade. Sou uma agarrada. Não me chuto, nem fumo, nem bebo (pronto, mentira, fumo e bebo ocasionalmente), mas sou uma verdadeira agarrada! Não vivo sem chocolate. É o meu único vício e, pelo grau de dependência, ainda bem, porque se fosse agarrada a outra coisa que não fossem os inofensivos grãos de cacau, estava tramada! Adiante. Começo a ler a minha banda desenhada e resolvo empanturrar-me com um dos pais natais de chocolate, cujo peso simpático de cento e sessenta e tal gramas é suficientemente convidativo e faz jus ao estatuto de gordo do velhote das barbas brancas, até então a repousar serenamente no paraíso dos doces que é a minha gaveta. Pensei para mim própria:
“ Não Sara, não o vais comer todo. É muito grande. Já jantaste uma sopa, dois pães com manteiga, queijo e paio, três postas de bacalhau, uma série de batatas, uma tigela gigante de alface e uma maçã. Já comeste o suficiente, ainda acordas a meio da noite com uma indigestão. É melhor comeres só dois bocadinhos.”
Seguindo os desígnios dos meus pensamentos, comecei por lhe arrancar a cabeça. Quem costuma comer pais natais de chocolate sabe bem o que custa desfazer tais espécimes. É um esquartejamento impossível de não deixar esses fragmentos abomináveis que são as migalhas. Fui evoluindo na minha refeição, guiada pela gula, normalmente uma louca só na mesa, mas que, desta vez, parecia também uma louca na cama, estimulada pelo apetite devorador de javalis do Obelix, especialmente entretido a caçá-los na minha leitura. Acabei com o pai natal e, julgava eu, com as migalhas que restaram do pai natal. Apaguei a luz; adormeci com a barriguinha cheia.
Hoje de manhã acordei com o despertador. Cheia de sono. A praguejar contra a minha vida. A arrastar-me para a casa de banho. Atrasada, como sempre. Enfim, o cenário habitual que, de tão habitual, qualquer dia bloqueia, qual disco riscado pela monotonia. Quando o pente se aventurou pelo emaranhado dos meus cabelos longos, belos, e perfumados do dia anterior, vacilou, como nunca é seu costume, e, contra tudo o que seria esperado, não deslizou por uma parte da minha cabeleira:
“Que é esta merda?!” – pensei eu, bêbada de sono e de espanto.
Levei então as mãos à cabeça e apalpei uma coisa mole agarrada ao cabelo, semelhante a pastilha elástica. Arranquei um bocadinho do pedaço de bosta que aquilo prometia ser, e o cheiro doce do pai natal de chocolate voltou a inundar a atmosfera. Tinha um pedaço enorme de chocolate ressequido a colar-me o cabelo!
“Fodasse, fodasse, fodasse, que é que eu faço agora?!”
Lavar o cabelo estava fora de questão, dado o adiantado da hora se me pusesse nessas andanças, só chegaria ao trabalho lá para as onze da manhã. Cortá-lo, nem pensar! Resolvi então arrancar o chocolate, passar parte do cabelo por água e encharcá-lo de perfume.
Escusado será dizer que a limpeza que empreendi foi tudo menos suficiente, o que, consequentemente, significa que hoje arrasto atrás de mim um cheiro doce que se vai parecendo cada vez mais com ovos moles estragados. Como tenho vergonha da minha dependência crónica, preferi dizer que o meu irmão entornou leite de chocolate por cima do meu cabelo, o que sempre é um argumento mais desculpável do que a realidade. Curiosamente, talvez porque o dia está mais perto do fim, não tenho vergonha de admitir tudo isto no meu blog. Vou-me debruçar sobre esta matéria daqui a pouco, enquanto procedo à deglutição, quiçá, de mais um pai natal de chocolate.
16 janeiro 2008
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2 comentários:
Cara Sara, tomei conhecimento pelo Alpiarcense do seu blogue e dos seus posts, como diz e bem Helder Figueiredo você escreve maravilhosamente, era para mim uma honra tê-la como colaboradora/autora do meu blogue http://rotundaseencruzilhadas.blogspot.com/, como tal remeta-me o seu mail para rotundas.e.encruzilhadas@gmail.com, terei o maior gosto em convidá-la a colocar lá os seus bonitos textos.
Cumprimentos R&E
Hahaha!
Fantástico post! :)
Os "agarrados" à heroína ficam com marcas nas veias. Os "agarrados" ao chocolate ficam com marcas no cabelo... :)
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