29 novembro 2007

Fado: O Uivo Pardo que Habita em Nós

No sábado passado fui jantar a um Clube de Fado localizado em Alfama, esse bairro típico de Lisboa de onde, como que cuspido por uma das sete colinas, se ergue o Castelo de S. Jorge. O modo como fui parar a este restaurante recôndito, enfiado numa das zonas mais castiças de Lisboa, reflecte um rol de acontecimentos aleatórios que iniciaram a sua descida vertiginosa pelo trapézio da noite mal a ideia “vou jantar fora” assomou no meu cérebro que, ansioso por um momento de lazer, não resistiu ao sibilar estridente do apito da resolução. Jantar fora em Lisboa não constitui uma novidade para mim; de facto, dado que um dos pecados mortais em que incorro frequentemente é o pecado da gula, o que, felizmente, ninguém diria dadas as minhas formas franzinas, conheço mil e um restaurantes na nossa capital ensolarada. No entanto, nunca me parecem os suficientes tal é a minha avidez curiosa pela comida. Quero descobrir o restaurante perfeito: que sirva o pão alentejano, o queijo da serra, uns bons espécimes de marisco e o peixe que saltou directamente do mar para o braseiro, tudo digerido ao ritmo fluído do vinho a escorregar pacientemente pela traqueia, como que num passeio descontraído até ao estômago e intestinos, onde é então esquartejado e obrigado a libertar o seu tão almejado segredo, o álcool.

Escolhi, num guia da capital, um restaurante situado perto do Largo de S. Martinho, um nome que me pareceu pertinente nesta altura do ano. Procurei, num outro guia da cidade, a localização do dito largo (sim, pode não parecer, mas eu sou uma pessoa prevenida, tenho o carro atulhado de mapas e guias de tudo o que é possível e imaginário!). Após alguns minutos rodoviários, animados pelos sinais luminosos, incessantemente indecisos entre o verde e o vermelho, começou uma longa jornada à procura de estacionamento; uma autêntica caça ao tesouro em busca de um buraco suficientemente grande para albergar um Golf. Ao fim de cerca de meia hora com os olhos esbugalhados tentando focar espaços livres ou transeuntes de partida, marchando sob a batuta do tilintar das chaves, o parque de estacionamento, ainda que longe como um raio, afigurou-se a melhor opção.

Iniciou-se então uma nova busca, desta vez pelo restaurante previamente escolhido, situado no tal Largo de São Martinho, um local perfeitamente desconhecido para mim.
- “Menina, o Largo de São Martinho fica ao pé da Sé, mas olhe que ainda é longe, uns bons quinze minutinhos a pé” – foi a informação gentilmente prestada por uma velhota corpulenta dos anos.

Os meus pés, calçados por umas botas de sete centímetros de altura, não apreciaram nada a travessia que se seguiu pelas ruas irregulares de Alfama, um autêntico tapete espinhoso de pedras da calçada. Depois de atravessar becos, ruelas e travessas íngremes com nomes tão sugestivos como “ Travessa do Quebra-costas”, lá alcancei a Sé de Lisboa e segui a linha do eléctrico, conforme as indicações previamente fornecidas. Do outro lado da rua, um grupo de gente reunia-se em redor de um carrinho de castanhas e um cheiro inconfundível a magusto esbatia-se no ar frio da cidade que, ao ritmo do vento, fazia arquejar de abandono as roupas estendidas nas fachadas de prédios toscos, amontoados com a harmonia do acaso num cenário bucólico, próprio de paisagem parada no tempo. Esta zona é o coração de Lisboa e não é possível ignorar aqui o seu pulsar intermitente, de quem não sabe se morrer não será melhor opção do que continuar a viver sem ser à sua maneira. E pensar que há tantos lisboetas, como eu, que nunca sentiram estes batimentos cardíacos, caracterizados por uma intensidade que só os caprichos da tradição podem conferir a um lugar. Jantar à portuguesa num restaurante de fado em Alfama devia fazer parte da série de passeios obrigatórios que damos na escola. Os turistas deliciam-se com esta Lisboa tantas vezes ignorada por nós, os habitantes da Lisboa cosmopolita, dos bairros novos repletos de prédios grandes e arejados, das janelas dos quais Alfama parece apenas uma miragem distante, um ponto minúsculo e fantasmagórico perdido na margem do rio.
No guia da American Express (e eu a dar-lhe com os guias!) definem-nos da seguinte forma: “ Os portugueses são gregários, comem e bebem em grandes grupos e nutrem alguma desconfiança pelos espanhóis. No entanto, por detrás dos sorrisos e do bom humor há um muito enraizado aspecto da psique nacional que os próprios portugueses denominam saudade, uma espécie de melancolia etérea que parece ansiar por algo perdido ou inatingível.”. Definem-nos bem. Conhecemos o segredo de ser-se feliz sem ignorar os cantos escuros da existência. E o fado expressa essa nossa “saudade” na perfeição.

Quando as luzes se apagam e todo o espaço fica iluminado pela luz que vai escoando, numa cadência mortiça, de um candeeiro vermelho, sabemos que chegou a hora do silêncio: o momento solene em que se vai ouvir cantar o fado. Acompanhada pelas guitarras, pelas violas e pelos bandolins, uma voz cuspida directamente da alma, como se a alma não aguentasse mais o pus que ela própria fabrica, entoa histórias da vida. A história da “vida séria que cegou os teus olhos de menina”, ou do “cacilheiro que nunca se cansa e que chega a um cais que cheira a jornais, morangos e flores”, ou do “povo que lavras no rio as tábuas do teu caixão”. Histórias da vida de cada um e que, à sua maneira, são também histórias da vida de todos nós. Recordando-nos que todos queremos ir um pouco mais além nesta bola azul que não para de girar devido aos pontapés obsessivos do infinito; recordando-nos que todos chegamos, desprevenidamente, a experimentar o amor porque ele é dos poucos, senão o único, escapes à igualdade pantanosa dos dias; e recordando-nos que todos acabamos por perder o brilho dos olhos, tão generosamente oferendado pela juventude, numa qualquer esquina dos anos que, qual cigana perita nas leituras da sina, nos antevê um futuro enublado pelas sombras da morte, já à espreita nos umbrais, autênticos biombos que servem, alternadamente, de refúgio à noite e ao dia, eternos amantes desencontrados desse jogo às escondidas a que chamamos calendário.

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